Revista 126: Farmacêutica conta como é atuar em áreas de conflito

A farmacêutica Amanda Amorim no dia em que chegou ao Iêmen: ela trabalha no Médico Sem Fronteiras

“O sorriso de uma criança que entrou numa das unidades de saúde desnutrida, quase morta, desidratada, e 15 dias depois tem aquela bochechinha redondinha moldando seu rosto jamais vai ter preço”. Em meio a bombardeios contra unidades de saúde no Iêmen e no Afeganistão, à dura batalha contra a Aids na Suazilândia e ao acompanhamento do primeiro ano de existência do Sudão do Sul, a farmacêutica Amanda Amorim Tomaz, de 37, tira sua satisfação dos pequenos gestos do dia a dia, como na recuperação de uma criança em meio aos conflitos. Desde 2010 atuando como farmacêutica no Médico Sem Fronteiras (MSF), ela vem rodando o mundo prestando assistência. Atualmen-

te em Marseille, na França, e se preparando para uma temporada na Guiné Bissau, a farmacêutica ficou até o início deste ano no Iêmen. Antes, em 2014, passou um tempo no Afeganistão. Nos dois países viu unidades de saúde serem bombardeadas e a morte de pacientes e profissionais de saúde.

“Em janeiro deste ano, estava na província de Sa’ada, no Iêmen, e o hospital em que eu trabalhava teve que receber as vítimas de um bombardeio que atingiu uma clínica local que dávamos suporte. Foi um momento terrível para todos. Já havia perdido um amigo e farmacêutico no bombardeio norte-americano contra um hospital do MSF em Kunduz, no Afeganistão, em outubro de 2015, e presenciar essa crueldade não é das coisas mais fáceis. Há riscos em alguns lugares aonde vamos, e neles o MSF toma todos os cuidados de segurança para proteger seus profissionais. E as regras dos conflitos, reconhecidas internacionalmente, afirmam que um hospital não é nem nunca poderá ser um alvo, de nenhuma força em conflito, sejam países ou grupos. Então esses ataques foram uma violação de tudo isso. Afinal, até as guerras têm regras!”, diz ela.

Nos dois países também teve que se adaptar à cultura local e à religião muçulmana, se vestindo e se comportando em público segundo os costumes locais.

“Ser capaz de despir-se de seus costumes e vestir os deles vai além da simples vontade de fazer o melhor por aquelas pessoas. E este é o momento em que você descobre que é capaz de superar qualquer limite - da criação que teve, da sociedade em que vive, das necessidades que julga importante neste mundo capitalista, autossuficiente e no auge da sua arrogância e prepotência, vazio.

Atendimento de emergência após um ataque aéreo em Sa’ada, no Iêmen

Foram ambos contextos de guerra, mas foram os mais marcantes. Se uma viagem é descrita pelo poder de fazer pensar e enxergar outros horizontes, uma viagem para um mundo no qual a maioria das pessoas tem medo de ir (ou impedimentos óbvios), onde se pratica uma outra religião sobre a qual a maioria das pessoas tem opinião sem conhecer e onde até os ventos têm sua versão da história que ali se passou, estas estadias não poderiam ser menos do que transformadoras”, diz ela.

Anteriormente, Amanda já havia passado por países africanos e contextos bem diferentes. Entre 2010 e 2011, esteve durante 13 meses na Suazilândia, onde um a cada quatro moradores são soropositivos e há uma batalha contra a tuberculose multirresistente. Na sequência, ainda em 2011, foi para o Sudão do Sul. O país havia sido criado naquele ano e contava com bastantes refugiados por causa dos conflitos que levaram à independência do país, antes integrado ao Sudão. Em 2012, seu destino foi Uganda, numa cidade perto da fronteira com a República Democrática do Congo e o Sudão do Sul, região com muitos casos de soropositivos e tuberculose, além de alguns surtos de Ebola e febre de Marburg.

No dia a dia nestes países, Amanda intercalava entre o gerenciamento de estoque nas unidades de saúde até ações diplomáticas ligadas aos ministérios da Saúde e os farmacêuticos.

“Somos muitos farmacêuticos pelo mundo. Em geral, gerenciamos o estoque e tudo que isso envolve, incluindo compras em alguns projetos, remanejamentos para locais em dificuldade com o recebimento, a abertura do serviço de farmácia, como nosso colega Eduardo Barbosa fez no Nepal ano passado, depois do terremoto, ou o Guilherme Simão fez depois do tufão nas Filipinas em 2013. Mas também podemos ter posições mais diplomáticas, como na minha primeira missão, quando eu tinha que passar uma boa parte do tempo em reuniões com o Ministério da Saúde e seus farmacêuticos.

Em Sa’ada, a farmacêutica Amanda Amorim faz o inventário na farmácia

E-mail foi pontapé inicial
O interesse de Amanda por projetos sociais começou quando ela estudou com um casal que participou do Projeto Rondon. O programa, na Amazônia e voltado para universitários, realiza ações participativas e busca integrar o estudante ao desenvolvimento nacional. Na época, ela não conseguiu se inscrever e o projeto foi encerrado.

Anos depois, Amanda recebeu um CD do Médico Sem Fronteiras que tinha como objetivo arrecadar fundos para os refugiados da Guerra do Kosovo. A partir daí, começou a pesquisar e, anos depois, em dezembro de 2009, mandou um e-mail para a instituição. Passados quatro meses, foi chamada para uma entrevista.

“Tive que lembrar todo o inglês que estudei e tinha ficado guardado por muitos anos… O mais interessante naquele dia foi que eu precisava fazer uma carta de intenção. Nunca tinha feito uma e nem sabia por onde começar. Pensando em meus anos de experiência com HIV e tuberculose no Rio, deixei meu coração dizer que queria levar este conhecimento e ajudar as pessoas que necessitavam dele na África”, lembra a farmacêutica.

Como ingressar no projeto
Farmacêuticos interessados em ingressar no Médico Sem Fronteiras devem acessar o site www.msf.org.br/trabalhe-conosco-exterior. Lá, estão as instruções para os interessados. Entre os requisitos, estão motivação para realizar trabalho humanitário em contextos precários, ser formado e possuir experiência profissional na área de atuação de pelo menos dois anos; disponibilidade para atuar por 12 meses, que podem ser divididos em projetos menores, dependendo do perfil profissional; ótimos conhecimentos de inglês e/ou francês, de preferência de ambas as línguas (no caso de profissionais de fora da área de saúde, o francês é imprescindível); capacidade para trabalhar e viver em condições, por vezes, básicas; entre outros.

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