Cientistas criticam aprovação de projeto de lei que libera ‘pílula do câncer’

A comunidade científica reagiu com indignação à aprovação, pela Câmara dos Deputados, de um projeto de lei que autoriza a produção e distribuição da fosfoetanolamina sintética, a chamada “pílula do câncer”. Pesquisadores entrevistados pelo GLOBO destacam que, como a substância jamais foi testada em seres humanos, sua eficácia, dosagem e efeitos colaterais são desconhecidos. Já pesquisadores envolvidos diretamente com fosfoetanolamina comemoraram a aprovação.

O projeto, que deve ser examinado pelo Senado até a semana que vem, também é criticado devido a suas falhas técnicas. Cientistas dizem, por exemplo, que não há na proposta instruções sobre como a pílula poderia chegar aos pacientes. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por sua vez, avalia que liberar uma substância que não passou por nenhum crivo técnico “seria colocar em risco a saúde da população”, retirando também a credibilidade tanto do órgão responsável por analisar e autorizar o uso de medicamentos no Brasil quanto de remédios devidamente avaliados.

— Não sabemos se funciona, se é tóxico, se interfere no tratamento convencional. A bula deste remédio seria um papel em branco — questiona Auro del Giglio, chefe da Oncologia Clínica do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer. — Seriam necessários pelo menos quatro anos até este medicamento passar por todos os ensaios clínicos necessários.

EFEITOS COLATERAIS TÓXICOS

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Bioética da UnB, Volnei Garrafa classifica o projeto de lei como “absolutamente irresponsável”, uma vez que ignora exames fundamentais para o desenvolvimento de uma terapia, como a averiguação de tolerância do remédio em voluntários.

— O Congresso Nacional está se rendendo a pressões ao passar por cima da comunidade científica — protesta Garrafa, que também integra o Comitê Internacional de Bioética da Unesco. — A autonomia proporcionada pelo projeto pode gerar problemas na Justiça e também sujeita a população a muitas reações adversas. Não conhecemos os efeitos colaterais do medicamento. Podem ser tóxicos, podem levar ao nascimento de bebês deformados, entre muitas reações.

A “pílula do câncer” é fruto de pesquisas do Instituto de Química de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP). Durante anos, foi distribuída localmente por funcionários do laboratório, com relatos de pacientes defendendo sua eficácia. Em junho do ano passado, porém, a universidade parou de repassar a substância. Pacientes e seus familiares entraram na Justiça para obter as pílulas, e, em outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou uma paciente a obter a substância, gerando um efeito cascata. Imediatamente formaram-se filas no local. No mês seguinte, porém, uma outra decisão, desta vez do Tribunal de Justiça de São Paulo, impediu mais uma vez a distribuição.

Segundo o texto aprovado na Câmara, a fosfoetanolamina poderá ser usada mediante apresentação de laudo médico e com consentimento do paciente, que teria que assinar um termo de compromisso. A proposta também autoriza a fabricação da substância mesmo sem o registro da Anvisa. Mas esta fabricação ficaria a cargo de “agentes regularmente autorizados e licenciados pela autoridade sanitária competente”, afirma o projeto de lei, assinado por 26 deputados.

Em nota, a Anvisa ressalta que “a única coisa inusitada em relação à fosfoetanolamina é o fato de que uma substância que foi desenvolvida há 20 anos, e vir sendo usada de maneira ilegal durante esse largo período, nunca ter suscitado em seus desenvolvedores a preocupação em fabricá-la em local adequado, realizar ensaios clínicos de acordo com os protocolos e, por fim, obter seu registro”. A agência se colocou à disposição para esclarecimentos no Congresso.

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde avaliará, a partir de abril, a segurança e a eficácia da substância no tratamento de pessoas com câncer em estágio avançado. A fosfoetanolamina será sintetizada em um laboratório em Cravinhos, a 270 quilômetros da capital paulista. Depois, o medicamento será encapsulado pela Furp, laboratório farmacêutico oficial do governo, ligado à Secretaria estadual de Saúde, e segue para a fase de testes.

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

O pesquisador aposentado Gilberto Chierice, que estudou a substância na USP de São Carlos, comemorou a aprovação na Câmara e revela que ainda é bastante assediado por pacientes com câncer.

— As pessoas criticaram primeiro, para depois verem que eu estava certo. Acredito que, quando tiver aprovação total, o governo do estado terá condições de fabricar a pílula em grande quantidade.

Um dos autores do projeto, o deputado Celso Russomanno (PRB-SP) explica que a intenção é tornar a pílula disponível gratuitamente pelo SUS. Em circunstâncias normais, no entanto, isso significaria obter autorização da Anvisa. Mas o deputado acredita que, com a aprovação da proposta no Congresso, este procedimento não será necessário.

— É lei. Poderemos distribuir, mesmo sem autorização da agência. Não vamos esperar por sua burocracia.

Fonte: O Globo