O mundo caminha para uma era "pós-antibiótica", em que infecções comuns podem matar. O alerta é do médico britânico Manica Balasegaram, diretor da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), recém-nomeado para coordenar o programa Pesquisa e Desenvolvimento de Antibióticos Globais (Gard, na sigla em inglês), lançado no último dia 27 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês). O objetivo do programa é financiar pesquisas para encontrar novos antibióticos.
O lançamento do Gard coincidiu com o anúncio do primeiro caso nos Estados Unidos de superbactéria resistente à colistina, o mais potente dos antibióticos, último recurso de infecções difíceis.
A paciente é uma mulher de 49 anos, da Pensilvânia, internada em abril com infecção urinária pela bactéria E. coli. Ela não havia saído do país nos cinco meses anteriores ao surgimento da doença. A vítima não reagiu ao tratamento com colistina, mas foi tratada com antibiótico menos potente e se recuperou.
Em novembro de 2015, uma cepa da superbactéria já havia sido identificada na China. Desde então, foi localizada em mais de 20 países. O temor dos pesquisadores é que o gene que confere resistência à cepa se espalhe por outros agentes infecciosos.
O Gard já recebeu 2 milhões de euros doados por Alemanha, Reino Unido, Países Baixos, Conselho Sul-Africano de Pesquisa Médica e MSF para financiar três linhas simultâneas de pesquisa.
Balasegaram, que trabalhou como médico de campo do MSF na África Subsaariana e no sul da Ásia, estará no Rio nesta semana para participar da Reunião de Parceiros do DNDi, que discutirá o desenvolvimento de novos antibióticos para as doenças negligenciadas - aquelas pelas quais a indústria farmacêutica não se interessa e não investe, como tuberculose e malária.
Recentemente foi anunciada a descoberta de um paciente nas Américas com resistência bacteriana a todos os tipos de antibióticos. Que risco essa descoberta representa?
As bactérias resistentes aos medicamentos não só viajam geograficamente, mas também os genes resistentes podem viajar entre patógenos. Este é um grande problema. Bactérias resistentes aos medicamentos não estão presentes apenas em ambientes hospitalares, mas também na comunidade. Em outras palavras, ao nosso redor, incluindo na nossa alimentação. Portanto, a recente descoberta nos Estados Unidos é uma confirmação de que temos que agir imediatamente, antes de nos vermos diante de um colapso completo da medicina moderna como a conhecemos.
As bactérias multirresistentes emergiram a partir da automedicação, mas existem evidências de que o uso de antibióticos em animais, para aumentar a produção, está relacionado à resistência em humanos. Estas práticas precisam ser revistas?
A multirresistência a medicamentos resulta de vários fatores que vão muito além da automedicação. Faltam diagnósticos adequados, rápidos e de baixo custo para determinar a questão mais fundamental: se a infecção é decorrente de vírus ou bactéria. Até hoje, muitas vezes, isso leva à prescrição excessiva de antibióticos. Acontece em países ricos e pobres. O uso exagerado de antibióticos na agricultura e criação de animais é uma das principais causas da resistência, o que levou à necessidade urgente de diminuir ao mínimo essa aplicação. Desenvolver resistência aos antibióticos é basicamente o que as bactérias fazem, é sua natureza. Ainda assim, temos que tentar retardar ou combater a resistência com todas as armas de que dispomos, garantir acesso a antibióticos para quem precisa, assegurar os antibióticos certos nas doses certas, administrar formulações e combinações para as infecções. Também controlar o excesso de comercialização de remédios, implementando diretrizes a níveis local, nacional e global. Os setores da saúde humana e animal têm de trabalhar lado a lado. Simplesmente não temos novos tratamentos com antibióticos, com medicamentos novos ou existentes, e é isso que o Gard pretende resolver.
Mas em poucos anos haverá bactérias resistentes a estas novas drogas também.
"É absolutamente necessário desenvolver novos antibióticos, mas, se não fizermos nada sobre como os antibióticos, já existentes e novos, são usados, controlados e acessíveis para as pessoas que necessitam, qualquer antibiótico novo vai encontrar resistência rapidamente"
A luta contra a resistência antimicrobiana tem que ser um esforço imediato e global. As economias emergentes, como o Brasil, terão papel crucial a desempenhar, possuindo sistemas de saúde cada vez mais robustos, capacidade para desenvolver antibióticos e também muitos dos problemas globais que são causas da resistência.
Como os países devem agir para evitar a proliferação de bactérias multirresistentes? A adoção de regras restritivas para o uso dos antibióticos é suficiente?
Devemos ser claros sobre como restringir o uso. Isso só é apropriado onde há excesso de uso. Mais pessoas estão morrendo por falta de antibióticos do que pela resistência. Mesmo que possamos ver essa tendência se inverter, temos que nos preocupar tanto em garantir o acesso aos pacientes que necessitam de antibióticos quanto sobre como proteger a "vida" dos antibióticos pelo maior tempo possível.
Fonte: UOL