Descarte de remédios: risco para a saúde e o meio ambiente

Quando a jornalista e escritora Maria José Rezende, leitora da Radis, resolveu fazer uma limpeza em sua farmácia doméstica, percebeu que muitos medicamentos estavam fora da validade. Com cuidado, tirou os comprimidos da cartela e jogou no vaso sanitário. “Deu uma tristeza danada. Eu sei que contamina o meio ambiente”, relatou, em e-mail enviado à redação, onde sugeria uma matéria sobre o assunto. Apesar de o descarte inapropriado também representar uma ameaça à saúde, o Brasil não dispõe de uma legislação que determine o que fazer com remédios que venceram. Enquanto tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 2.121, que obriga a rede farmacêutica a se responsabilizar pelo descarte, alguns estados e municípios já se anteciparam na aprovação de leis próprias, a maioria orientando os usuários a procurar farmácias e drogarias. Também está em curso, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA), acordo setorial que vai implantar coleta e restituição dos resíduos ao setor, com responsabilidade das empresas em reaproveitar e dar destinação ambientalmente adequada aos produtos recolhidos. 


Como Maria José, a maioria dos brasileiros dá o mesmo destino aos remédios que não são mais utilizados ou perderam a validade. Mas vaso sanitário e lata do lixo não são lugares ideais para efetuar o descarte, já que o remédio descartado libera substância tóxicas que podem contaminar o meio ambiente e causar problemas de saúde. Por isso, não podem ser tratados como lixo comum. “Tratar incorretamente esses resíduos pode contaminar o solo, lençóis freáticos, lagos, rios e represas, e atingir a fauna e flora que participam do ciclo de vida da região afetada”, alertou a farmacêutica Debora Melecchi, diretora de organização sindical da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar), em palestra na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em outubro de 2014. Segundo Debora, o descarte aleatório de medicamentos, vencidos ou não, pode afetar diversos ecossistemas.

Quando o medicamento é despejado no vaso sanitário ele pode percorrer dois caminhos diversos: ou cai na rede de esgoto ou infiltra no solo através da fossa séptica. Segundo adverte o site eCycle — especializado no descarte sustentável de produtos diversos —, os sistemas de tratamento de água ainda não dão conta de eliminar algumas substâncias e elas acabam atingindo rios e mares. O descarte no lixo simples não é diferente, já que o chorume dissolve e absorve os produtos químicos que muitas vezes atingem o lençol freático.

Estudo da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), elaborado por especialistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostra que anualmente milhões de medicamentos são descartados de forma irregular. De acordo com a pesquisa, realizada em 2013, o montante de resíduos gerado pela população brasileira é de 10,3 mil toneladas por ano. De acordo com outro estudo, publicado na revista Ciências do Ambiente, em 2009, quase 89% das pessoas descartam seus resíduos farmacológicos no lixo doméstico.

Falta legislação

A farmacêutica Louise Jeanty de Seixas, professora da Faculdade de Farmácia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que o Brasil ainda não tem legislação específica para o descarte de medicamentos de uso doméstico vencidos. Segundo ela, em alguns municípios há iniciativas pontuais de empresas e grupos de saúde, que recebem os medicamentos. “Creio que para a maioria da população não está claro para onde destinar os medicamentos e quem vai pagar a conta”, diz Louise, ressaltando que o processo de destinação destes resíduos inclui coleta externa, transporte, reciclagem (do papel das caixas e bulas), tratamento dos medicamentos em si e disposição final.

A Anvisa confirma que não há norma em vigor. “Hoje, a Anvisa só tem regulação de descarte de resíduos sólidos, que inclui medicamentos, em hospitais”, informou a agência, fazendo referência a RDC n.º 17/2010 que estabelece boas práticas de fabricação de medicamentos. Por isso, a Anvisa orienta a população a encaminhar os medicamentos para as agências de vigilância sanitária locais ou depositar em farmácias indicadas por estas. “Elas podem receber, mas não são obrigadas. Não há norma”, comunicou em nota enviada à Radis.



Leis municipais

Embora, em nível nacional, não tenham ainda sido estabelecidas soluções corretas para o descarte final de medicamentos, há municípios que já possuem legislação específica sobre o assunto. Em Passo Fundo (RS), desde 2007 a Lei 4.462 dispõe sobre a obrigatoriedade de as farmácias manterem urnas para a coleta de medicamentos, insumos farmacêuticos, correlatos, cosméticos deteriorados ou com prazo de validade expirado. Seguindo o exemplo do município, em 2012 o estado do Rio Grande do Sul promulgou a Lei 13.905, dispondo dos mesmos termos. Em Porto Alegre, a Lei 11.329 oficializa o descarte e obriga as farmácias a receber e acondicionar os medicamentos e suas embalagens, bem como providenciar o destino ambientalmente adequado.
No Amazonas, a Lei nº 3.676/2011 criou o Programa Estadual de Coleta de Medicamentos Vencidos ou Estragados, que determina que farmácias e drogarias mantenham em locais visíveis do público recipientes (eco pontos) para o descarte dos medicamentos vencidos ou estragados. Na Paraíba, a Lei nº 9.646/11 obriga drogarias e farmácias, inclusive as de manipulação, a instalar pontos de coleta de medicamentos já comercializados, que se encontram vencidos ou impróprios para o consumo, deixando-os sempre em locais visíveis nos estabelecimentos. Em Cuiabá, a Lei 5.678/13 prevê a coleta de medicamentos vencidos ou não utilizados em farmácias revendedoras, de manipulação e drogarias. No Acre, foi criado o Programa Estadual de Coleta de Medicamentos Vencidos ou Estragados, por meio da Lei 2.720/13, com o objetivo de sensibilizar a população para que o descarte de medicamentos vencidos ou estragados seja feito na rede farmacêutica.

Na Câmara dos Deputados, tramita um projeto de lei que obriga drogarias e farmácias, entre elas as de manipulação, a manter recipiente em local de fácil visualização, para recolhimento de medicamentos impróprios para o consumo ou com data de validade vencida. Apresentada pelo deputado Walney da Rocha Carvalho (PTB/RJ), o PL 2.121, de 2011, prevê que esses estabelecimentos devem informar aos consumidores sobre os riscos de descarte de medicamento de modo inapropriado.

Como a leitora Maria José, o deputado Walney assume a dificuldade em realizar o descarte. “Eu doo quando é medicamento de uso geral. Mas no caso de medicamentos específicos, fica mais difícil. Dependendo do medicamento, eu jogo até no vaso, o que é horrível”, diz ele, reforçando a importância do PL. O deputado entende que as farmácias e drogarias podem ser grandes colaboradoras no processo já que, usualmente, seus medicamentos vencidos são recolhidos pelas indústrias. “Quem faz a relação entre o fabricante e o usuário são as drogarias e farmácias. Elas têm que mediar isso. O custo operacional desses estabelecimentos será o de colocar um módulo de recolhimento em local visível para orientar a população”, afirma. O PL 2.121/2011 teve parecer favorável do relator, deputado Renato Molling (PP/RS), e tramita em caráter conclusivo. O texto ainda será analisado pelas comissões de Seguridade Social e Família; de Constituição e Justiça e também de Cidadania.

Acordo setorial

O Ministério do Meio Ambiente (MMA) informou à Radis que estão em curso negociações sobre um acordo setorial que vai implantar a logística reversa de abrangência nacional no setor de medicamentos domiciliares vencidos ou em desuso. O acordo determina que as empresas efetuem ações para viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos ao setor, reaproveitando esse material ou dando uma destinação final ambientalmente adequada aos produtos recolhidos.
Zilda Veloso, diretora do Departamento de Ambiente Urbano do MMA, afirmou que o setor de medicamentos entregou três propostas de acordo setorial. Segundo ela, as propostas foram analisadas pelo corpo técnico do ministério, por representantes da indústria e do comércio farmacêuticos e de distribuidores de medicamentos. Questionada sobre a razão de o acordo setorial não ter sido ainda assinado, Zilda disse que o ministério “solicitou aos membros do setor de medicamentos que apresentassem uma proposta única até maio de 2015”. Após consolidação das propostas, o texto final de acordo setorial será enviado para apreciação do Comitê Orientador para Implantação dos Sistemas de Logística Reversa (CORI), coordenado pelo MMA. A Anvisa informou que aguarda a consolidação do texto.

Resíduos perigosos

O farmacêutico José Liporage, do corpo técnico da Coordenação de Desenvolvimento Tecnológico (CDT) do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), diz à Radis que a preocupação com o descarte deve ser de toda a cadeia produtiva, e não somente do usuário. Ele lembra que, muito embora as farmácias não sejam obrigadas a coletar medicamentos domiciliares, desde 2014 elas são também são consideradas estabelecimentos de saúde, o que implica sua responsabilidade por esse descarte.

A Norma RDC 306 da Anvisa, de 2005, regulamenta a conduta para o descarte correto de medicamentos em hospitais e clínicas, públicas ou privadas, e está em processo de atualização. Sua orientação para os usuários é levar medicamentos vencidos a uma unidade de saúde mais próxima, mesmo sabendo que, na maior parte dos municípios brasileiros, essas não são obrigadas e recebê-los.
Além do descarte dos medicamentos e de suas embalagens, Liporage adverte que é preciso também ter cuidado com as excreções. “Alguns medicamentos para câncer podem sair ativos nas fezes e na urina vários dias depois de administrados, trazendo risco para a família e para o meio ambiente”, exemplifica. Segundo ele, o paciente e sua família deveriam ser orientados, quando necessário, sobre como podem neutralizar o medicamento no próprio domicílio.

Medicamentos fracionados

Debora informa que todas as unidades básicas de saúde da capital paulista fazem o recolhimento de medicamentos vencidos. No entanto, ela indica que hoje, no Brasil, a maior parte dos pontos de coleta ainda se encontra em estabelecimentos privados. “Nas capitais e em grandes municípios, as grandes redes de farmácia fazem o recolhimento”, conta a pesquisadora. Debora alerta ainda para a falta de aterros sanitários ou incineradores em muitos municípios, medida necessária para conter a contaminação, e aponta como uma solução a obrigatoriedade da produção de medicamentos fracionados — que permitiria ao usuário receber apenas a quantidade necessária para o seu tratamento.

Para Louise, a vantagem dos medicamentos fracionados é que eles individualizam os receituários e não permitem sobras. “Mas esse sistema implica em uma mudança muito grande em todo o setor. O farmacêutico deixa de ser aquele que apenas entrega a caixa e passa a ter um papel orientador. Não é só um vendedor do produto”, diz. Ela ressalta, ainda, o risco de os medicamentos vencidos, se jogados no lixo doméstico ou mesmo armazenados sem cuidado, serem utilizados e reaproveitados por terceiros. Debora acrescenta que é preciso debater a questão, pois a sobra de medicamentos pode induzir ao mau uso. “Muitas vezes as pessoas fazem uso de medicamentos vencidos que não terão eficácia alguma e correm o risco de intoxicar o próprio organismo”, sinaliza, informando que a automedicação é uma das maiores responsáveis pelos registros por intoxicação em todo o país.

Fonte: Revista Radis