Imunoterapia pode abrir caminho para a vacina contra o câncer

Quando Alexander Fleming descobriu a penicilina, em um laboratório de um hospital em Londres, a humanidade entrou em uma nova era, entre os anos 30 e 40, com o surgimento do antibiótico. Antes, no século 19, os avanços de Louis Pasteur na microbiologia culminaram com conquistas como a vacina anti-rábica. Tudo acontecia em ambientes acanhados, no fundo de clínicas, em meio a pipetas, buretas, cientistas bigodudos, suando em seus ternos e forçando a vista em seus pincenês.
Atualmente, de maneira mais requintada, em plena época molecular, cheia de alarde, em avançados centros de pesquisa e com apoio financeiro de peso, o mundo talvez esteja assistindo à consolidação de um novo caminho para a cura do câncer: a imunoterapia. Segundo médicos brasileiros que estiveram na Asco (American Society of Clinical Oncology), em Chicago, a conferência, encerrada na última terça-feira (2) mostrou que tal tratamento já é um dos pilares no combate a essa doença dramática, mas já menos misteriosa.
São os casos dos oncologistas Marcelo Cruz, do Centro Avançado de Oncologia na Beneficiência Portuguesa (SP), e Fábio André Franke, coordenador do Centro de Alta Complexidade em Oncologia do Hospital de Caridade de Ijuí (RS). Entusiasmados, eles cogitaram até que, a partir dos novos conceitos da imunoterapia, se possa chegar a uma vacina contra o câncer. Cruz afirmou:
— Caso se consiga encontrar uma terapia que atue no sistema imunológico e ele tenha uma ação rápida contra alguma célula que pode aparecer (e provocar o câncer), ele irá agir desta maneira. E até para prevenção com pacientes de alto risco portadores de mutações hereditárias, para que eles utilizem algum procedimento como vacina para proteção contra o câncer. Não dá para saber quando isso será possível, mas está evoluindo muito rápido (a pesquisa neste sentido).
Mudança no padrão de tratamento
Seria uma vacina inovadora, específica, possivelmente em função da reação individual de cada paciente. O HPV (de colo de útero) já é um tipo de câncer prevenido com vacina. Mas o leque pode ganhar uma dimensão muito mais ampla. Por enquanto, a imunoterapia tem uma ação mais conhecida em casos graves como câncer de pulmão, que mata cerca de 1,3 milhão de pessoas ao ano (segundo o Inca) e melanoma já avançados. Trata-se de um processo no qual há a liberação do sistema imunológico para que ele combata as células cancerígenas, conhecidas por bloquear a capacidade de defesa do organismo.
É a mudança de paradigma no combate a esse inimigo que até então debochava da angústia de pacientes e médicos cada vez que doses cavalares de quimioterapia se acumulavam, combalindo sistemas imunológicos. Isso para, no fim, lamentar, muitas vezes, pela multiplicação das células cancerígenas. Cruz acredita que a nova alternativa agride menos o corpo do paciente.
— Quimioterapia gera toxicidade e, com a imunoterapia, são utilizadas drogas menos tóxicas que possibilitam com isso o uso prolongado para que se possa garantir ainda mais sobrevida ao paciente.
Na imunoterapia, o próprio organismo se torna aliado do paciente, permitindo que o sistema imunológico ataque determinadas proteínas produzidas pelo câncer. Um novo medicamento, o Nivolumabe, foi testado em 582 pacientes com câncer de pulmão escamoso, aumentando a sobrevida, em alguns casos, de 9,4 meses para 19,4 meses, segundo o laboratório Bristol-Myers Squibb.
O medicamento, no estágio 3 de pesquisa, já está sendo comercializado nos Estados Unidos, segundo Franke. No Brasil, já é comercializado o Ipilimumabe, que combate outro tipo de proteína, a CTLA-4 (o Nivolumabe combate a PD-L1). Estuda-se também a combinação dos dois medicamentos, ambos aplicados de maneira intravenosa.
Caminho a ser seguido
Há, ainda, muitas questões a serem desvendadas, neste complexo mundo do sistema imunológico, feito, entre outros, de macrófagos, linfócitos e muitas dúvidas. Uma delas, segundo a ONG Cancer Research, em artigo da BBC, é o desconhecimento, em longo prazo, das mudanças no sistema imunológico provocadas pelos medicamentos.
Outra indagação busca desvendar mecanismos de resistência do organismo, que ainda limitam a duração da sobrevida, apesar do avanço já verificado. Franke ressalta.
— Temos de usar com cautela os dados para definir tratamento. Os dados nos mostram um caminho a ser seguido. O tratamento, no caso da utilização dos medicamentos voltados ao câncer de pulmão e melanoma, pode ter efeitos colaterais, auto-imunes, como tireoidite, colite, inflamação intestinal e inflamação pulmonar, controláveis na maioria dos casos, segundo Franke. Cruz ressalta, porém, que a imunoterapia já é uma realidade, mesmo com a necessidade de ainda ser mais estudada.
— A Asco 2015 entrou para a história do tratamento do câncer. Partiu de um ponto que não tem volta. Cada sessão do Congresso foi uma verdadeira plenária relativa à imunoterapia, em várias áreas. Todos os prêmios foram dados a pesquisas sobre o tema. A imunoterapia já é um quarto pilar no tratamento do câncer, sendo uma alternativa para a quimioterapia, a radioterapia e a terapia alvo.
Na Asco, foram apresentadas alternativas de utilização de imunoterapia em outros casos, como câncer de intestino e de rim. A imunoterapia também pode ser utilizada em alguns casos de neoplasias hematológicas, câncer que, diferentemente de tumores sólidos, não está restrito a um ponto e envolve componentes como sangue, medula óssea, baço, gânglios linfáticos e fígado. Um exemplo é o linfoma.
Nesse universo de alta complexidade que é o corpo humano, muita coisa ainda precisa ser decifrada. Isso instigava Fleming na busca da penicilina e Pasteur antes de cada descoberta. Também se veem em um mar de dúvidas os atuais pesquisadores do tratamento do câncer, mesmo com todos os recursos atuais. A palavra que prevaleceu para todos eles é "talvez". Assim como prevalece agora para a imunoterapia, que talvez seja o caminho da cura. A palavra talvez às vezes intimida. Mas, bem aceita, é aquela que abre portas para as descobertas da Ciência e para a própria evolução da humanidade. Com toda a certeza.

Fonte: Tribuna Hoje